sábado, 1 de novembro de 2008

Escrever, humildade, técnica

"Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias coisas, mas não realmente do que apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em "humildade", refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu mesma me assutei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri esse tipo de humildade, o que não deixa de ser uma forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que o erro dá à vida, faz perder muito tempo."

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Clarice

sábado, 18 de outubro de 2008

danço eu, dança você, na dança da solidão

de quatro, no seu quadrado
cada um no seu quadrado

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A chuva cai, de pouco, entre trovões. Muitos esperam pelo fim da jornada de trabalho, querendo pisar a rua ruim de novo. Chove, e todos têm um risco escuro na cara, atravessado de orelha à orelha. Até as crianças.
Dum lado ela segura a criança, do outro, a sacola. O trajeto é longo. Uma senhora se aproxima, com os olhos pequenos imersos na face cheia, tentando estender alguma coisa. Os olhos parecem que vão se afogar.
Uma das mãos avança bamba pelo espaço enquanto a outra busca o corrimão em que se apoiar. No farol vermelho, ela entende: um relógio fosforecente, por cinco reais. À prova dágua, bom para quando chove.
O ônibus encosta. No ponto, um senhor de idade mede a distância entre as próprias orelhas, com uma fita métrica.
Aqui chove sempre, ela pensa, olhando o vidro marcado de pingo. As gotinhas brilham atravessadas pelas luzes em movimento. A vendedora do relógio insiste, sacudindo o ar. Ela tenta explicar que está sem dinheiro, mas a vendedora grita com força, o som da voz a alcança esganido. Já não é mais uma senhora, talvez uma mulher, cuja voz vem de baixo.
A mãe abaixa os olhos, e vira o rosto. As gotas na janela lhe provocam certa tontura, brilhando pequenas e despedaçadas. Alguém lhe segura o braço em que carrega a criança. É a mulher do relógio, que está passando. Vai tentar vender no segundo carro.
Se pudesse, ajudava. Já tinha ficado sem dinheiro pra pagar a saída do ônibus, lembrou, enquanto reparava um homem a sua frente. Ele media o pulso com uma fita métrica, repetidas vezes. Depois media o comprimento dos dedos, o comprimento da mão aberta. Mão de homem, ela lembrou: quando há homens no ônibus é mais fácil de conseguir dinheiro.
Ficou olhando as gotas e as luzes na janela: uma delas subia enquanto as outras desciam. A rua ruim trovejou, bem perto dessa vez. Pareceu que dizia alguma coisa, ela não entendia. Sentiu o corpo vacilar, os olhos caírem pra dentro enquanto os ouvidos se abriam para fora, num grito inaudível para quem só estava por perto.

sábado, 27 de setembro de 2008

O hoje me aperta entre seus dedos metálicos mas ainda não me tem nas mãos. Contra toda a paisagem o vento vem: acaricia e transfigura aquilo que da palavra não se espera que alcance. Corpo em grito, desejante, de quase morte: ar se deslocando. Emaranhado tenso em desmanche a perguntar como fazer da cisão uma fresta. Um raio. Que se desenhe paralelo a terra e o céu, cortando a paisagem da tormenta.

Grande escritor

Uma vírgula pequena no canto da boca, que o escritor esqueceu de pôr e quando viu tava mastigando ela, tempão. Aquela vírgula de dizer a hesitação, a tentativa de não saber pra poder entender melhor. A vírgula de ser inacabado, como o horizonte. Um fã da Clarice lhe disse que a amava com mudo fervor, ao que ela lhe respondeu que todo fervor é mudo.

Como não ter ordem pra escrever um texto, encontrar a vírgula ao dobrar a esquina e ficar olhando, olhando, a quebra que ela faz no que já não está inteiro. Como as ruas vazias, becos, aquilo do que não está escrito. Não no papel, mas se vê impresso na pele do mundo, por todos os cantos. Cantos da boca, em que o escritor mastiga a vírgula.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

VOU MOSTRAR QUE EU SOU TIGRÃO:

deu pra mim, é cadela

...

Homem textura
olhos investigando
o que não se evita.
(nem se imagina)

No campo imenso
a torre de petróleo duvida:
(sem que eu saiba dizer se é ela
ou o campo
quem está só)

- Em que consiste a masculinidade?

De súbito,
sem intenção,
a janela refaz a tarde

terça-feira, 23 de setembro de 2008

outra versão

Noturno

Cachaça boa
o bar ia entrando
entornando

A sinuca toc-toc
a cara depenando...

a bola ia
vinha

A cachaça, é da boa
a cara, mais perto
e o bar

continua aberto




Totonha

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.

Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?

O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?

Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?

Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?

No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.

Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?

Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.

Ah, não vou.





Marcelino Freire, In Contos Negreiros, pp79-81.Record, 2005

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

fora de mim

fora de mim
danço na madrugada
com bom humor
sem dar pelas minhas razões.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

há ocasiões na vida
que se deve pensar radicalmente




poema do grande-poeta-sem-maiúscula berimba de jesus

De noite

Cachaça boa
o bar ia entrando
entornando a coluna e a ultrapassagem.
A sinuca toc-toc
a cara ia depenando
a bola ia
vinha

A cachaça é da boa
a cara, mais perto
e o bar continua aberto
no canto mais negro da noite

tá convidado

um convite ao nosso rabisco de todo dia. escrita que nasce pra ser incompleta, pra ser encontro e desencontro.
meta aí a sua caneta!
(se der na veneta...)

bate-boca

saliva
entre dente e língua